Revitimização dos crimes sexuais e falhas no sistema judiciário brasileiro

Revitimização dos crimes sexuais e falhas no sistema judiciário brasileiro

Casos de revitimização no Brasil explicitam violência de gênero no país; especialista explica os motivos do número de casos

São Paulo, julho de 2023 – A violência sexual contra mulheres no Brasil é diária e normalizada. Mais do que isso, é muitas vezes institucionalizada no país, uma vez que muitas mulheres são colocadas em um ciclo de abuso e agressões que é suportado por uma justiça que não as protege apropriadamente. A chamada revitimização, acontece quando uma mulher sofre uma série de atos e questionamentos que geram constrangimentos nas mulheres que foram vítimas de violências de gênero.

No Brasil, a luta feminista ainda não conquistou todas as mudanças necessárias para as mulheres. Para se ter uma ideia, 9% das mulheres brasileiras sofreram violência sexual alguma vez na vida segundo a Pesquisa Nacional da Saúde. Outro desafio enfrentado pelas mulheres é a desigualdade salarial, em média os salários das mulheres representam apenas 77,7% do rendimento dos homens, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Esse desafio é ainda mais agravado quando as mulheres são diminuídas e questionadas na justiça.

De acordo com Mayra Cardozo, professora de Direito Penal e especialista em violência de gênero, mesmo com tanto tempo, ainda acomete muitas mulheres. “É muito comum que as mulheres sofram revitimização quando são vítimas em processos judiciais, em especial processos em que se discute violência sexual. Isso ocorre como uma espécie de violência psicológica, seja pelos membros do judiciário, do ministério público e pelos advogados da outra parte que, muitas vezes, questionam a credibilidade da palavra da vítima, duvidando de sua palavra, fazendo com que a vítima não se sinta como tal. Ela acaba se sentindo culpada pela própria agressão”, explica a especialista. 

Por exemplo, uma vítima de estupro, em processo judiciário, é feita crer que o crime foi culpa dela, ou a façam acreditar que está mentindo sobre o ocorrido. “A revitimização está muito associada a violência psicológica, onde a credibilidade da vítima é posta em cheque”, completa Mayra. 

A revitimização está muito ligada a questões sociais, às ordens sociais opressoras, qualquer indivíduo pode ser vitimizado. Mas é muito comum que as identidades subalternizadas sejam muito mais revitimizadas e questionadas, principalmente devido a um histórico de opressão. “Mulheres que estão em um processo judiciário no polo ativo, costumam ser revitimizadas pois é trazido para esse processo, todo um resquício de uma ordem patriarcal, onde os corpos femininos são objetificados, mulheres são constantemente tratadas como loucas, descredibilizadas, interrompidas e questionadas naquilo que elas argumentam”, revela Mayra. 

É importante enfatizar que a revitimização com certeza é uma forma de violência contra a mulher, mesmo porque é mais frequente em casos em que a mulher tem seu bem jurídico afetado, esteja como vítima e seja reutilizada. É uma forma de violência psicológica que, hoje em dia, é considerada um crime. 

Como diminuir essa violência? 

Segunda Mayra, as pessoas precisam questionar essa ordem patriarcal, questionar os julgamentos, evitar julgar outras mulheres, uma vez que isso cria uma lógica de rivalização patriarcal que cria uma órbita de competição entre as mulheres. “A maneira de combater isso é evitar pré-julgamentos, questionar nossos valores e questionar a maneira em como ocorrem os julgamentos, não partindo de crenças introjetadas em nós. Vivemos em uma sociedade baseada na opressão, que faz com que tenhamos julgamentos apressados e generalizados, que julga a mulher frequentemente”, alerta a especialista. 

Outra maneira de combater essa situação é através das próprias instituições, como é o caso do judiciário. “Este ano, o CNJ lançou uma resolução que combate essa questão, que orienta como os juízes devem proceder para que não exista revitimização, principalmente nos casos de violência sexual. Foi promulgada também a Lei Mariana Ferrer que faz com que as partes interessadas no processo cuidem para que não haja uma revitimização, todo um cuidado para ouvir a vítima e as testemunhas”, explica Mayra. 

O protocolo do CNJ define como os magistrados devem agir no curso das audiências, para que não exista a revitimização com base no gênero. “Basicamente, eles colocam passo a passo como os magistrados devem agir e se atentar para que não exista a violência psicológica. É necessário sempre que as instituições verifiquem se existem desigualdades estruturais que tenham papel relevante no processo, para isso é necessário olhar o caso particularmente que visem criar uma instrução processual igualitária. Isso vai desde o início do processo até o fim, pensando inclusive em questões práticas para garantir a segurança da vítima. O protocolo do CNJ, permite que os juízes tenham seus erros auditados e corrigidos”, esclarece Mayra. 

A Lei Mariana Ferrer, visa de fato punir essas condutas, a lei tem origem em um caso de revitimização em um caso processual, que veio por parte de vários membros do julgamento, em que a Mariana Ferrer foi amplamente revitimizada. “A lei está em vigor e visa garantir a integridade física e psicológica da vítima, garantindo que sejam feitas acusações que não estão presentes nos autos. É comum que a defesa use fotos e outros relacionamentos para manchar a reputação da vítima e culpá-la pela própria violência. Isso não ocorre somente no Brasil, é comum em todo mundo. Diversas séries atuais tratam dessa temática internacionalmente, mostrando uma sociedade patriarcal sempre”, expõe Mayra. 

A norma, inclusive, proíbe a utilização de termos machistas nos tribunais. Esses termos buscam colocar vítima nessa condição, e a lei também permite que o magistrado vete perguntas que a defesa queira fazer, para proteger a integridade da mulher, ofensas e linguagens impróprias que podem desestabilizar a vítima. “Essa lei traz um reconhecimento daquilo que a mulher historicamente sofre no país repetidamente, a lei busca coibir isso”, enfatiza a especialista. 

Ainda de acordo com Mayra, para mudar a realidade existem dois pilares. “O primeiro é cada vez mais as instituições se atentarem às medidas que visem controlar isso, acompanhadas de políticas públicas que fiscalizem as leis, principalmente nos casos de violência doméstica e sexual, para garantir o cumprimento da lei. O segundo é a educação, não apenas nas escolas, como também nas instituições jurídicas, colocando o tópico como prioridade. É um absurdo que o sistema jurídico brasileiro seja precursor de revitimizações, esse não é o papel das instituições”, finaliza Mayra Cardozo, especialista em Direitos Humanos, Penal e Stalking. 

Sobre Mayra Cardozo

Mayra Martins Cardozo é advogada com perspectiva de gênero, sócia do escritório Martins Cardozo Advogados. Membro permanente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB – CNDH. Educadora, ministra aulas na Escola Paulista de Direito, na Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM e no Centro Universitário de Brasília. É colaboradora executiva da revista suíça Brainz Magazine. Palestrante sobre diversidade e inclusão. É líder de empoderamento feminino, desenvolve sessões 1:1 na sua “Mentoria para Mulheres Mal Comportadas” na qual integra suas pesquisas sobre gênero, sua formação em Feminist Coach e sua perspectiva psicanalítica em um trabalho que visa questionar crenças internalizadas que sustentam a sociedade patriarcal e impedem que mulheres tenham relacionamentos saudáveis, ocupem espaços de poder e tenham um boa relação com seu corpo.

 
Maria Carolina Rossi
Comunica PR
 
 
 

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